Chegávamos na casa do Ricardo, mas, antes passávamos pelo bolo na cozinha e depois íamos para a caixa d’água do Vinhal e ai sentávamos numa montanha de saberes, conhecimentos, mergulhávamos naquela caixa de revistas para pescar revistas de quadrinhos, notícias, celebridades, decoração, moda, viagem, turismo, palavras cruzadas… etc. Cloves Mendes, (Neto) é cineasta consagrado, filho da Terra Boa (Mantena), e traz um texto lindo que a gente simplesmente se apega, ao acabar deixa a sensação de querer mais … simplesmente magnifico, maravilhoso…
Cineasta Neto Mendes volta aos anos 60 e apresenta ao público a importância da Caixa d’água do Vinhal para Mantena
Neto Mendes
A caixa d’água do Vinhal não era uma caixa d’água qualquer era uma caixa d’água muito alta sustentada por quatro colunas altas com de mais de 6 metros, acho que tinha 2 X 3 de base, era retangular(?) com paredes altas nos três lado talvez uns 2,5 metros de altura (a parede acabava e ficava um vazado até o reservatório d’água), um lado era fechado com tábuas grandes na horizontal igual paiol/tulha de café/milho, vai enchendo vão colocando tábuas para não esborrar, se vai diminuindo o volume vai tirando as tábuas. Assim também funcionava a caixa d’água do Vinhal na parte alta era água 10, 20 mil litros?
Na parte baixa era milhares de revistas de tudo quanto é classe que se pode imaginar editadas no Brasil dos anos 60, amontoadas uma sobre as outras e todas sem capas. Ali eram depositadas as revistas que não eram vendidas no período de circulação, algumas eram editadas semanalmente, outras mensalmente. As revistas que não eram vendidas as capas eram arrancadas e enviadas para as editoras em vez de devolver a revista toda. Mas essas revistas sem capas não podiam ser vendidas ou doadas, eram armazenadas e ficavam ali, naquele local, só podia lê-las ali, não podia levar nenhuma.
Em tempos o volume diminuía, acho que queimavam um pouco, mas nessa minha vida nunca consegui mergulhar até o fundo dessa magnífica caixa d’água de revistas, me lembro que as vezes estava alto que para subir era preciso improvisar uns degraus.
Mas, antes vamos na antiga rodoviária de Mantena a onde começa a nossa odisseia. Ali era um lugar que borbulhava gente, gente saindo, gente chegando, era o pulmão e o coração da cidade, era ali que a cidade pulsava, quase tudo chegava ou passa pela rodoviária.
Circulavam muitas histórias, muito dinheiro, muitas vidas, tudo era business, engraxates, camelôs, carregadores, vendedores de picolé, era um fervilhão de gente a qualquer hora e qualquer dia da semana, quando passo por ali hoje vem um filme na cabeça: Vejo um vazio de tudo, de ônibus, de gente, de barulho, de histórias, de dinheiro, de vida…… quase tudo simplesmente morreu.
Na parte de cima do prédio era o hotel do Jairo e da tia Miquita, em baixo que me lembro tinha o Bar do Pingo, algumas lojas, guichês das empresas e o maior espaço era Magazine da Professora Zinha Vinhal, a mãe do Ricardo, ela comandava o Magazine, era uma ladies no atendimento com pulsos de aços e coração de mãe.
O Magazine ficava na esquina mais nobre do prédio com várias portas que dava para todos os lados, se o cabra descesse do ônibus e errasse os passos ele já caía dentro do Magazine, isso que é estratégia de mercado, era o marketing já naquela época.
Vendiam de tudo, roupas, brinquedos, papelarias, sapatos e também vendiam revistas e jornais. Era ali a maioria das vezes que passamos entre 5 a 6 moleques ávidos para fazer alguma coisa e arrastávamos o Ricardo, que depois do almoço ajudava no caixa do Magazine, era lá que o encontrávamos e o destino dessa trupe muitas vezes era a casa dele para matar o tempo, o sol de Mantena entre a uma e as quatro da tarde era muito quente, (hoje a sensação térmica é muito mais, há 46 anos atrás alertei para plantarmos árvores nas nascentes e preservar nossos mananciais, rios e córregos do município de Mantena, alguns ouviram, outros riram achavam que era papo de maluco.
Hoje 2023 a região declarou racionamento de água e vai piorar! Hoje água vale ouro. Tínhamos que arrumar brincadeiras para matar o tempo na sombra até o clima permitir jogar futebol. Chegávamos na casa do Ricardo, mas, antes passávamos pelo bolo na cozinha e depois íamos para a caixa d’água do Vinhal e ai sentávamos numa montanha de saberes, conhecimentos, mergulhávamos naquela caixa de revistas para pescar revistas de quadrinhos, notícias, celebridades, decoração, moda, viagem, turismo, palavras cruzadas……. etc; Era um desafio, era uma surpresa qual revista pegar, o que lê e ao mesmo tempo também era uma competição lê mais que o outro, as crianças sempre estão competindo entre elas e a leitura fazia parte dessa sadia e sábia disputa.
Ficava uma sensação de achar algo extraordinário e ler rápido, e dar outro mergulho na caixa de revista, e pescar e pescar, e lê e lê. Nossa geração simplesmente tinha sede de lê, gosto pela leitura, prazer em lê e incentivos. Lê é viajar para muitos lugares sem sair do lugar, é conhecer muitas coisas desconhecidas, é imaginar, é sonhar, é sabedoria.
A casa do Ricardo era como a maioria das casas dos nossos amigos dos anos 60 em Mantena, eram casas cheias, uma penca de filhos, de 6 para cima em escadinha, e cada filho tinha sua tribo e isso tornavam essas casas ainda mais cheia de vida, de energia, de hormônios, de adrenalina e de muitas brincadeiras e às vezes de puxões de orelhas também… Chegar na casa do Ricardo era chegar neste cenário.
O Senhor Vinhal era uma pessoa que me passava serenidade, paz, doçura, era reservado. Para mim ele falava mais com o olhar do que com as palavras. E com certeza nunca existiu uma caixa d’água no mundo que jorrava saber, só em Mantena! O nosso sangue ainda transborda a sede do conhecimento, ávidos estamos sempre aprendendo e conhecendo, esse é o espírito dessa água da caixa d´água do Vinhal correndo nas nossas veias mantenenses…
Veja mais